Os fiscais nomeados pela Câmara Municipal de Franca deviam remeter trimestralmente à edilidade um relatório circunstanciado das ocorrências de sua área. Tais relatórios, que seriam fontes de dados de valor inestimável, eram redigidos em folhas avulsas que, depois de apreciados pelos vereadores, seriam arquivados. Com o passar dos anos, formariam pilhas e mais pilhas de papel, de conservação extremamente difícil, numa época em que não existiam pastas para recebê-los e talvez nem lugar para guardá-los, pois a própria Câmara se reunia em casa de vereadores, pela degradação cada vez maior da velha Cadeia.
A consequência, absolutamente normal, o seu desaparecimento, perdendo-se, irremediavelmente, boa parte da história da própria Vila e dos distritos. Salvaram-se, somente, algumas referências a eles, quando o problema era levado às sessões da Câmara e as atas registravam sucintamente os debates e as deliberações. Fica frustrado o pesquisador, quando encontra – “O fiscal do Carmo apresentou seu relatório, que foi encaminhado à Comissão Permanente” – e depois nenhuma palavra a respeito do seu conteúdo. Ou então uma referência muito vaga, que não permite chegar a nenhuma conclusão. É o caso, por exemplo, da multa de 8$000 aplicada a Antônio Carlos Bernardino, em abril de 1843. Por que foi multado?
Ás vezes há um pouco mais, quando a autoridade é outra. É o caso do Procurador da Câmara, denunciando aos vereadores que o Fiscal do Carmo “não tem cumprido os seus deveres, deixando de multar alguns indivíduos pertencentes a sua repartição, que têm negócio sem licença, em prejuízo não só da Fazenda Pública, como desta Câmara, de cujos indivíduos apresenta a lista e a Câmara deliberou oficial “ao mencionado Fiscal estranhando sua pouca exatidão no cumprimento de seus deveres, remetendo-lhe a lista dos indivíduos, que se sabe, para listar-se a seus respeitos, como a Lei determina e, sendo multados, se fazer participação, para se agenciar a arrecadação das multas” (Ata de 19/01/1844). É claro que as multas revertiam em favor do cofre da Câmara, nada ficando no povoado.
Esta preocupação de arrecadar cada vez mais, de simples negociantes de vendinhas, que venderiam aguardente em retalho, uma ou outra ferramenta rural e pouca coisa mais, coexistia com outra, os chamados três ramos, o de estanques, aferições e cabeças. Os produtos estancados, que imemorialmente eram considerados especiais, consistiam no sal, fumo e bebidas importadas, o de aferições relacionava-se com pesos e medidas e o de cabeças ao abate de animais. Postos em licitação em 1847, a arrematação, mínima seria de 150$00 para a Vila Franca e Macaúbas, …20$000 para o Carmo foi arrematado por 27$000, segundo informou o Fiscal – (Atas de 08/11/1847 e 27/01/1848).
Há, porém, algumas outras notícias curiosas, dentro deste arcabouço jurídico-administrativo, que estamos mostrando e que revelam o relacionamento entre as pessoas e os governantes tinham velhíssimas raízes ibéricas, das ordenações manoelinas e filipinas, que iam mergulhar nas fontes do direito romano. E é incrível que vicejassem nestas áreas sertanejas.
Assim, por exemplo, é a petição de Francisco Barbosa Sandoval e sua mulher, “exigindo para certas causas que tem de tratar no Distrito do Carmo, que fosse chamado o imediato em votos na Lista dos Juízes de Paz daquele Distrito a prestar juramento e tomar posse, por se haverem dados de suspeitos os três juízes juramentados e o quarto por ter se mudado do Distrito”. A Câmara ascendeu, chamando-se o Tem. Manuel Ferreira de Menezes, para prestar juramento aos Santos Evangelhos e tomar posse (Ata de 27/01/1846).
Todos estes cargos de juiz de paz, subdelegado de polícia, arruado e vereadores (na Vila) eram exercidos sem nenhuma remuneração e considerados um múnus público, a que os “homens bons” não se furtavam e, antes, serviam com orgulho e dedicação (muitas vezes com prejuízo da saúde e do próprio bolso). Os vereadores, por exemplo, quando faltavam sem justificativa a uma sessão da Câmara eram multados em 8$000, importância que dava para comprar uma vaca leiteira ou um cavalo marchador. O Juiz de Paz, Manuel Ribeiro de Almeida, pediu licença à Câmara para ir a Corte do Rio de Janeiro em giro de seu negócio – (Ata deseria somente fonte de vexame e só retornou quando os conservadores foram vencidos).
Isso mostra como as eleições eram disputadas de forma aguerrida. Entenda-se, porém: no Império, os votantes eram os casado ou maiores de 25 anos, excluídos os soldados da força policial e votavam nas eleições primárias, para vereadores, eleitores e juízes de paz, pessoas de seu direito conhecimento, já os eleitores sufragavam os deputados provinciais, os deputados provinciais, os deputados gerais e os senadores. Para ser eleitor, a idade era a mesma dos votantes, mais a renda anual de 200$000 ou diploma de curso superior. Sufrágio universal, como hoje, não, porque a escolha exige discernimento. Os legisladores no Império não acreditavam em utopias… Nem por isso, as eleições eram primor de lisura. É só ler Francisco Belisário Soares de Sousa (“O Sistema Eleitoral do Império” reed. Do Senado Federal, Brasília, 1979, pg.28) para constatar o rol das falcatruas!
Quando o Carmo foi elevado à Freguesia, as eleições passaram a ser realizadas na Matriz, sem que os votantes precisassem ir à Franca. A primeira, uma eleição primária, foi a de 17 de junho de 1949. E foi anulada! Venceram os conservadores, com José Eduardo de Figueiredo a frente (Ata de 22/06/1849), mas a Câmara da Franca representou ao Governo Provincial, indicando as nulidades do pleito (Ata de 11/08/1849).
Um ano depois, a Assembleia Provincial anulou as eleições com o seguinte parecer: “Colégio (Eleitoral)da Franca – Neste Colégio parece que são evidentemente nulos os Eleitores (eleitos) da Freguesia do Carmo, uma das que lhes compõe, já porque na formação da Mesa Paroquial não foram observadas as disposições do art 6° da Lei Regulamentar das Eleições, já porque é excessivo o número de eleitores (eleitos) que deu, porquanto esta Freguesia novamente (recentemente) criada, quando reunida à Vila Franca, de 14 eleitores em 1844, 16 e 1842 e tendo guardados os mesmo 14 e a Freguesia do Carmo (elegeu) 7 é claro que excedeu ao número que segundo a Lei deveria dar o qual não pode ser mais de 18. Além disto, a Comissão entende que toda a eleição está incansavelmente nula, por defeitos na formação do Mês, nas chamadas e na organização da ata” – (Ata de 17/08/1850). A nova eleição foi feita a 30 de setembro de 1850.
Complicados pela inexperiência, os carmopolitanos tinham ainda como acicate as rivalidades partidárias e a Câmara da Franca, ao receber o Livro de Junta de Qualificação (de votantes), verificou que estava com “muitas linhas riscadas” e oficiou ao Presidente da Junta “estranhando o procedimento” – (Ata de 31/11/1851).
Por tudo isto, devia ser recebida alegremente a notícia da criação de uma Companhia da Guarda Policial (Ata de 19/06/1850), pelo menos pelos espíritos desapaixonados, se é que existiam… A anulação da primeira eleição realizada no Carmo mostra que as brigas partidárias seriam uma constante na Freguesia e deve servir de consolo para o quadro atual.
Viajando no Tempo 4.